Ao entrar na melhor universidade da América Latina, senti que não pertencia àquele lugar. Ainda havia uma lista de clássicos da literatura que eu não tinha lido, assim como sociólogos e diretores de cinema dos quais só sabia o nome por conta de conversas entre os meus colegas. Eu provavelmente tinha chegado lá por um golpe de sorte. Meses mais tarde, também passei em uma prova de Latim, certamente por acaso: eram declinações e conjugações mil, mas que qualquer um poderia decorar, afinal.
Anos depois, quase deixei de participar de um processo seletivo para a minha revista favorita por não acreditar, de forma alguma, que o diretor seria capaz de achar graça e ver potencial no punhado de palavras que escrevi. Talvez em uma realidade paralela. Cheguei a achar que ele teria se enganado ao me escolher. E passei tempo demais pensando sobre trabalho – me tornando a workaholic do meu círculo social – por crer que devia me dedicar mais que os outros para estar à altura do cargo… de estagiária.
Eu me sentia uma impostora. Assim como Pauline Clance e Suzanne Imes: duas psicólogas americanas que, ao enxergar tais sentimentos em si mesmas e em 95 mulheres (estudantes, professoras e outras profissionais) da Universidade do Estado da Geórgia, em 1978, cunharam o termo “fenômeno do impostor”. Trata-se dessa incerteza que uma pessoa tem sobre seus talentos e habilidades, a dificuldade de internalizar um sucesso, e uma dúvida sobre a própria competência. Um sentimento de inferioridade que se mantém, não importa quantos elogios o profissional receba, quanto conhecimento acumule e quantas conquistas alcance.
“É importante destacar que todos nós temos momentos em que não nos sentimos confiantes. Isso não significa que tenhamos a síndrome do impostor.” Quem explica a diferença é Luciana Lima, neuropsicóloga e professora do Insper, que afirma conhecer excelentes profissionais que compartilham desse sentimento. “Quem tem a síndrome se sente dessa forma a maior parte do tempo. Trata-se de um sofrimento que faz parte do dia a dia.”
Não é uma doença
Luciana diz “síndrome” – e nós também, no título e no decorrer desta matéria – porque esse se tornou o nome popular do problema. Mas a sensação crônica de ser uma fraude no trabalho ou no meio acadêmico não é uma síndrome. Ela não consta na Classificação Internacional de Doenças (CID) da OMS, por exemplo, ou no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). O nome que aparece em estudos científicos sobre o tema é mesmo “fenômeno do impostor”, porque o problema não é um distúrbio mental.
Ele também não é apenas um problema individual, sem relação com o contexto de vida do indivíduo. Ele é mais frequente entre mulheres e minorias étnico-raciais. É o que mostrou Dena Bravata, médica da Universidade Stanford (EUA) e seus colegas, que fizeram a primeira revisão sistemática de artigos sobre o fenômeno do impostor.
Dos 66 estudos considerados, que avaliaram 14 mil pessoas, 33 traziam distinções por gênero. Destes, 16 mostravam que o fenômeno era mais prevalente entre mulheres – os outros não identificavam diferença entre elas e eles. E todos os 11 estudos que trazem dados sobre pessoas brancas e não brancas concluem que o fenômeno é mais comum no segundo grupo.
Outras conclusões que vieram com o artigo de Bravata, publicado em 2020 no Journal of General Internal Medicine, são que o fenômeno está, sim, correlacionado com depressão e ansiedade, associado ao burnout (este sim, considerado uma doença ocupacional) e insatisfação com o trabalho.
É fácil de entender: quando você se sente um impostor, pode tentar combater o sentimento de insuficiência trabalhando cada vez mais e colocando padrões altíssimos para si mesmo. Você pode viver com medo de descobrirem que, na verdade, não é mesmo tão bom assim no que faz – e por isso busca a perfeição, inalcançável. Tudo isso faz com que o impostor se sinta culpado, frustrado e esgotado. O que, ironicamente, acaba prejudicando seu desempenho em suas tarefas.
Identificando o problema
Como a síndrome do impostor não é de fato uma síndrome, não há um diagnóstico oficial para o problema. Mas existem escalas que prometem medir a intensidade com que uma pessoa se sente um impostor, no escritório ou no meio acadêmico. A mais antiga (e famosa) é a Escala Clance de Fenômeno do Impostor (ou CIPS, na sigla em inglês), criada em 1985 pela psicóloga americana que deu início aos estudos sobre o tema.
É um questionário de 20 perguntas, aplicadas apenas por profissionais. Mas você confere uma amostra no quadro abaixo. A menor pontuação que uma pessoa pode alcançar no teste completo é 20. A maior, 100. Considera-se que pontuações acima de 60 já indicam uma sensação frequente de fraude.
Identificar a síndrome pode ser o primeiro passo para tratá-la. Você pode percebê-la em si mesmo ou em seu colega de equipe. Ele é perfeccionista e busca por validação o tempo inteiro? Ele trabalha além do necessário e parece não acreditar que realiza suas tarefas de maneira satisfatória? Talvez ele se sinta um impostor – e precise de ajuda para perceber o problema.
Mas as lideranças e os profissionais de RH também podem (e devem) perceber quando alguém se sente um impostor, já que este é um problema que afeta a autoestima, a saúde mental e o desempenho de seus colaboradores. Um bom profissional que sofre da síndrome do impostor pode recusar um cargo de gerência, deixar de propor um projeto interessante ou procrastinar tarefas com medo de entregá-las, por exemplo.
Segundo Luis Gonzalez, CEO da Vidalink, empresa de bem-estar corporativo, é possível identificar o fenômeno no cotidiano corporativo, prestando atenção aos comportamentos dos profissionais. “Mas eu acredito que alguns momentos são cruciais, como reuniões de feedback. É importante observar como o colaborador lida com críticas construtivas, e avaliar se ele parece não aceitá-las, mesmo diante de uma boa reunião.”
Como resolver no escritório
Os especialistas ouvidos pela VOCÊ RH concordam que uma gestão de pessoas empenhada em criar um escritório saudável pode evitar o desenvolvimento e a manutenção da síndrome do impostor. “Uma cultura de bem-estar permite que se reconheça e aceite a vulnerabilidade, por exemplo, permitindo que os colaboradores compartilhem suas preocupações sem medo de julgamento”, defende Gonzalez.
Há algumas medidas práticas que ajudam. Programas de mentoria, por exemplo, possibilitam que um profissional seja acompanhado de perto por um colega mais experiente – que fornece um olhar de fora e talvez já tenha enfrentado o mesmo problema. Uma jornada de aprendizado contínuo permite que os profissionais aprimorem ou adquiram novas habilidades e se sintam mais confiantes. Oferecer benefícios de assistência psicológica (e incentivar os colaboradores a utilizá-los) facilita que os “impostores” busquem apoio profissional para tratar a questão, melhorando a saúde mental e o desempenho no escritório.
Mas iniciativas como essas não resolvem o problema por si só: as lideranças e os profissionais de RH precisam investir pesado em uma cultura organizacional positiva e na criação de um ambiente de segurança psicológica. Como fazê-lo? Renata Rivetti, especialista em felicidade corporativa e fundadora da Reconnect: Happiness at Work, afirma levar em consideração quatro aspectos fundamentais para a segurança psicológica, definidos por Amy Edmondson, professora de liderança e gestão na Harvard Business School.
A pesquisadora defende que a primeira característica desses ambientes é o fato de que, neles, a vulnerabilidade dos profissionais é bem aceita e trabalhada. Os erros costumam ser comentados abertamente, sem punições ou julgamentos. A segunda característica é a comunicação transparente. Existe a possibilidade de conversar tranquilamente com os colegas e com o gestor, que mantém proximidade com sua equipe. A terceira característica destes ambientes: a colaboração prevalece, em vez da competição entre as pessoas. E a última: o escritório é inclusivo, há uma diversidade de pessoas, e todas têm voz.
Como resolver sozinho
Promover um ambiente de trabalho baseado nesses aspectos é uma maneira de as empresas diminuírem as chances de seus colaboradores se sentirem inseguros e adotarem uma atitude baseada na autossabotagem. Mas há também maneiras individuais de se combater a síndrome (e o RH pode divulgá-las, para quem sofre escondido saber o que fazer).
Uma especialista que elenca tais medidas é Mayra Cardoso, advogada e membro da empresa de mentorias para mulheres Woman To Be. Ela defende que há cinco passos essenciais para combater a síndrome. O primeiro seria identificar os sintomas para reconhecer e aceitar o problema. Outros são: manter em mente a importância de relembrar e celebrar, periodicamente, as pequenas conquistas; procurar desenvolver inteligência emocional (algo que pode ser feito a partir de psicoterapia, por exemplo); e estabelecer metas realistas no trabalho que evitem o sentimento de sobrecarga e promovam um senso de realização contínua.
Tudo isso seria importante para a construção da autoestima. Mas o último passo, e não menos importante, é buscar apoio. Colegas, amigos e mentores, como já mencionados, podem não só dar orientação prática ao impostor, o que é importante para enfrentar determinados desafios profissionais e acadêmicos, mas também ajudá-lo a analisar sua situação de maneira racional e validar sua insegurança – que talvez eles mesmos já tenham sentido. Lembre-se: um impostor é “aquele que abusa da credulidade ou ignorância dos outros; um mentiroso, um falsário”. E não há maldade alguma em sentir dúvidas sobre a própria competência. Só falta de gentileza consigo mesmo.
OS CINCO TIPOS DE IMPOSTORES
Valerie Young, fundadora do Impostor Syndrome Institute, diferencia impostores segundo suas noções de competência. Não é uma classificação oficial. Mas ajuda a entender formas distintas do fenômeno se manifestar.
- O PERFECCIONISTA: Ele se critica por pequenos erros em vez de reconhecer seu esforço após concluir uma tarefa – e evita tentar coisas novas porque não se sairá bem de primeira.
- O GÊNIO: Para ele, pessoas competentes adquirem habilidades com pouco esforço. Esses impostores se sentem frustrados e constrangidos ao passar por dificuldades.
- O INDIVIDUALISTA: Ele acredita que deve ser capaz de lidar com tudo sozinho. Quando não consegue, considera que suas conquistas não são dignas o suficiente.
- O ESPECIALISTA: Ele quer aprender tudo sobre determinado assunto e acaba juntando informações por mais tempo que o necessário, em vez de acabar a tarefa em questão.
- O SUPER-HERÓI: Essas pessoas acreditam que, se fossem realmente competentes, teriam sucesso em todas as funções que ocupam – seja no escritório, no círculo social ou em casa.
*Consultamos “Prevalence, Predictors, and Treatment of Impostor Syndrome: a Systematic Review”, Dena Bravata e outros (2020); Mariana Deperon, autora do livro Eu, Impostora? (2021); e Rodrigo Lang, CEO da Human SA, grupo educacional focado no bem-estar corporativo.
Este texto faz parte da edição 91 (abril/maio) da VOCÊ RH. Clique aqui para conferir os outros conteúdos da revista impressa.