Esta reportagem faz parte da edição 72 (fevereiro/março) de VOCÊ RH
Não existe separação entre o mundo dos afetos e o do trabalho. Tudo se mistura. Por isso, as questões de cunho pessoal e a individualidade devem ser trabalhadas — e observadas — para o sucesso empresarial. Essas conclusões, que hoje parecem estar cada vez mais óbvias para líderes de diversos segmentos, foram alcançadas nos anos 1960 pelo psicólogo Luigi Pagliarani.
Mas a inventividade do pensamento do italiano está em outro aspecto de sua teoria da psicossocioanálise, como a batizou. Ele diz que os indivíduos têm questões e traumas que, se não forem tratados e discutidos, se transformam em sintomas — fobias, dores no corpo, doenças físicas, problemas de ansiedade. Da mesma maneira, as companhias têm suas questões mal resolvidas que podem se traduzir em sintomas como cultura tóxica, pessoas infelizes e alto número de demissões.
“A psicossocioanálise junta o lado afetivo, que é a psicanálise, com o lado do trabalho, que é o estudo da sociologia, da socioanálise”, explica o psicossocioanalista Marco Dalpozzo, diretor de RH da CBF e quem trouxe ao Brasil a Ariele, instituição italiana que dissemina o conceito. Segundo ele, o que o RH precisa ter em mente é que a empresa e seus empregados são uma coisa só, que existe uma analogia entre a relação do líder com seus subordinados e a relação do grupo de afetos familiares com o grupo do trabalho.
Relacionamento sincero
O primeiro passo para implementar o conceito é desconstruir qualquer tipo de estereótipo e paradigma que distancie e desumanize a área de recursos humanos, como explica Isabella Carneiro, coordenadora de RH da L’Oréal, atriz e uma das entusiastas do tema no país. De acordo com ela, se o setor continua sendo a figura que está analisando, julgando ou demitindo — como alguns acreditam —, a confiança está totalmente abalada. E, para fazer um bom trabalho de psicossocioanálise, é preciso ter uma relação muito próxima e sincera com as pessoas. Isso quer dizer que aplicá-la tem muito mais a ver com sensibilidade e empatia do que com processos engessados e iguais para todos. A companhia deve ter um olhar genuíno para as pessoas e para a forma de interagir com elas.
Mas o que acontece, segundo a psicanalista Claudia Cavallini, consultora e professora na HSM Educação Executiva, é que, por questões práticas e pela necessidade de resultados rápidos, a maioria das empresas acaba adotando a linha da psicologia comportamental, que trata apenas da conduta humana. Essa escolha se reflete em olhar todos os funcionários pela mesma óptica, com necessidades e objetivos parecidos. “Precisamos de um olhar mais personalizado, que é um dos aspectos da psicossocioanálise”, diz. Na visão da consultora, se os RHs pensassem no funcionário com necessidades individuais, não ofereceriam um plano de saúde igual para todos, por exemplo.
“A área deve começar a flexibilizar mais os processos, discutindo com os profissionais o que é melhor para cada um.” Ela exemplifica com o caso de um líder que tenha dificuldade de falar em público. O olhar apenas para o comportamento vai dar como solução um curso de oratória. Já a visão da psicossocioanálise vai investigar por que esse gestor tem dificuldade na comunicação.
Conversa aberta
Para que a empresa e os profissionais tratem seus traumas, é preciso incentivar um ambiente de diálogo constante, como explica Marco. Segundo ele, se torna indispensável ter espaço para conversar sobre temas como ansiedade e angústia, ambientes tóxicos e clima organizacional. “Isso não pode ser um tabu. Somos seres humanos e, além de inteligência para desempenhar o trabalho, temos emoções que devem ser levadas em conta. Temos que perder o pudor, nas organizações, desse nosso lado pessoal”, diz.
Nesse sentido, Isabella explica que é necessário envolver a liderança em assuntos humanos, tornando esse tópico relevante, deixando claro quanto ele é estratégico. “O negócio e as pessoas se misturam e se impactam mutuamente. Devemos incluir, com protagonismo, a liderança em pautas de clima, cultura e saúde mental para promover a verdadeira transformação”, afirma. O RH tem as ferramentas — pesquisa de clima, por exemplo — e precisa potencializá-las por meio do envolvimento da chefia.
Para Cinthia Alves, psicóloga especializada em desenvolvimento humano e mudança de comportamento, a empresa é um espaço para que a própria companhia e os profissionais falem e tratem de seus traumas. “A organização pode ser um ambiente de cura ou de adoecimento, depende da forma como lida com as pessoas e com seu ambiente”, diz. Isso quer dizer que, se incentivar gestores tóxicos e trabalho em excesso, terá profissionais estressados e até doentes. Por outro lado, se propagar o diálogo e a qualidade de vida, terá uma equipe mais produtiva e inovadora (veja mais no quadro ao lado).
Como sensibilizar os líderes
Antes de iniciar qualquer estratégia de humanização, o olhar do RH deve recair sobre os líderes. Sem que eles comprem a ideia, é difícil seguir com o projeto. E isso vem por meio da emoção. Isabella conta que, para elaborar um plano com o objetivo de aumentar a contratação de pessoas negras na divisão de cosmética ativa da L’Oréal, convidou 40 gestores para uma aula de história no centro do Rio de Janeiro, onde há grandes marcos da diáspora africana, ao redor do Cais do Valongo (cemitérios dos Pretos Novos, Pedra do Sal, Praça da Gamboa, Praça da Prainha e Casa da Tia Ciata).
“Primeiro você emociona, cria uma sensação para tocar os outros, envolvendo afeto e empatia. Depois fala de indicativos. É a partir daí que a transformação começa”, diz. Segundo ela, na visão comum, a empresa tenta sensibilizar líderes a trazer a diversidade, a incluir, mas sem tocá-los de verdade. Como resultado, não há engajamento e fica mais difícil atingir a meta. A ação já surtiu efeitos, e a companhia triplicou a contratação de pessoas negras na divisão durante o último ano.
Outro aspecto da psicossocioanálise é a construção do sonho coletivo para, com base nas necessidades e objetivos individuais, elaborar uma meta comum. Isabella implementou a prática em uma das marcas da L’Oréal. “Normalmente, cada pessoa tem seus desejos, e a empresa não os integra em um objetivo único.Dessa forma, certamente aquele time não olhará para o mesmo lugar e haverá algumas dissonâncias e disfunções”, explica. Em uma reunião de equipe, ela fez o exercício de cada um escrever seu sonho pessoal para, assim, identificar o que era comum entre todos e criar um caminho único. “É o propósito, o que dá direcionamento e faz com que os funcionários trabalhem e se conectem à empresa não apenas pela remuneração mas por acreditarem no negócio”, explica Marco. E, mais do que nunca, as empresas precisam disso.
Clique aqui para se tornar nosso assinante e ter acesso a todo o conteúdo de VOCÊ RH